terça-feira, 15 de junho de 2021

Ferocidade : a poesia de Alexandre Pilati

 

Ferocidade :  a poesia de Alexandre Pilati


O poeta Armando Freitas Filho, em conversa que tivemos há alguns anos, confidenciou-me que a poesia e tudo que envolve seu processo, da criação à sua leitura, são matéria de confraria: a confraria dos ferozes, disse-me ele. Falávamos naquela oportunidade sobre o reduzido número de leitores de poesia, especialmente aqui, por estas bandas periféricas abaixo do Equador, gigantesca ilha cercada por espano-falantes, onde se cultua a última flor do Lácio, inculta e bela. Refletindo, tempos depois, sobre essa conversa e essa curiosa definição, percebi que ferozes são, por princípio, todos os poetas, seja pela insistência em produzir versos num planeta que parece desprezá-los, seja pela couraça impenetrável que desenvolvem e que os faz seguir contra tudo e todos. Ferozes são alguns poemas que, não fazendo concessão ao bom-mocismo ou a uma possível literatura cor-de-rosa, investem na denúncia e no confronto. Ferocidade é a palavra que condensa melhor os belos poemas de “Autofonia” (Penalux, 2017), o quarto livro de poesias do autor candango Alexandre Pilati.

Os poemas se nos atravessam como pequenas facas, pontiagudas, que nos incomodam, nos causam desassossego e nos despertam para um mundo onde a frieza e a voracidade inflexível do capital nos consome a todos. São poemas de alerta. Seus versos, objetivos, sem subterfúgios, tocam na ferida, expondo a podridão que nela se esconde: a exploração cruel do homem.  São poemas que em nada, em momento algum, se mostram panfletários, uma vez que a arte poética de Alexandre Pilati desmonta qualquer indício de pacto com o clichê infantil de quem berra sem arte. Sua refinada arquitetura poética nos captura na beleza de imagens, de alusões e ilusões que dinamitam os limites do campo semântico das palavras, ampliando sua possibilidade de interpretação. São poemas que investem em versos harmônicos, abandonando em certos casos a melodia chã. Nesse sentido, nos delicia o estranhamento de versos que soando independentes acabam por se chocar espaço do sentido, por aproximações surpreendentes, ecoando sua musicalidade epifânica.

È, sem sombra de dúvidas, uma trabalho de deliberada resistência. Uma poesia que se assume de batalha e que combate o capital e seus males sem titubear. O verso que não se acanha diante do perigo e se arrisca, indo da aparente coloquialidade ao rigor da mais rica construção. O ensinamento que se esconde sob o “versi strani” de Alexandre nos diz que está “pronto para fazer desabar num átimo os mais sólidos pontos de vista” (“Lâmina-só”)

A um leitor desavisado deve-se alertar, como Dante à porta do Inferno, ao entrar em “Autofonia”, saiba, a poesia de Pilati é uma poesia de confronto. Seus versos, como no clássico de Bandeira, estão manchados pelo real, são “a nódoa no brim”. Tocado, contaminado pela vida, que observa atentamente, e que filtra com sensibilidade extrema, o poeta nos traz, em versos, não apenas a denúncia de sua tragédia, mas também a beleza de sua existência. Sua preocupação é o que nos cerca: a vida presente, o tempo presente, como em Drummond, uma sua influência evidente. Nesse sentido, os poemas de “Autofonia” são do tipo sentimento-do-mundo com o upgrade do talento do Alexandre.

Observamos maravilhados essa batalha do poeta contra o caos instalado, contra a exploração do seu povo, contra a reificação das coisas que importam – ou que, pelo menos, deveriam importar. Se, para o deus mercado, tudo vira coisa, o afeto-coisa, o amor-coisa, o homem-coisa, os versos de Pilati, às vezes carnavalizando, no sentido Bakhtin de ser, corroem a estrutura sangue-suga do capital, retirando a sua máscara, expondo o seu tutano pútrido, como em “Um carnaval em crise”

Vou dançar contra os homens brancos da velha família.

Vou contar com o cordão dos derrotados.

Vou dançar com os negros contra Wall Street.

Vou contar com o cordão dos derrotados.

Dançaremos, dançaremos e dançaremos.

Até que o sol se encante, esquente e resolva

por vida novamente neste frio corpo chamado planeta,

que tanto cheira às etéreas notas do dinheiro. 

Na poesia do autor candango, não há espaço para a submissão ou passividade. São tempos de luta, meu amigo! Ele parece nos dizer. Os versos de Alexandre Pilati movem-se certeiros e nos fazem mover, quando, por exemplo, faz profissão de fé da crença indefectível na ação, em seu “Poema no espelho”:

Meu desamor pela pasmaceira: viril, incivil, declaração de guerra.

O poeta não se ilude, sabe que a luta é ferrenha, dolorida, mas segue incansável, feroz e cheio de esperanças, como quando canta Lukács e celebra “as manhãs azuis que superam as tormentas”. Não se deixe enganar, caro leitor, não há fatalismo nos poemas de “Autofonia”, há sim uma crença maior no sentido do humano e na possibilidade de revolução total: política, sexual, artística. Como ele insiste em declarar, há vida brotando à revelia nas ventas do morto (“Ralhete”), mesmo que, doloridamente, tenha que reconhecer, em “A flor e a crise”:

a cidade que anoiteceu sem luar

sem estrelas em desatino mercadoria

A voz que o poeta escuta, que nasce do registro do outro e reverbera em seu coração, não esmorece. Seu verso declara: nossa boca morde a cidade na boca (“Boca da noite”) e digerindo esse beijo urbano, constrói seus versos, pequenos grandes manifestos da revolta.

Manuel Bandeira, um cidadão com perfil liberal, se dizia um poeta menor. Não era um juízo de valor, mas uma constatação dentro de seu conceito muito particular de menor e maior. Para ele, o poeta maior seria, infiro aqui, o Drummond de Rosa do Povo ou Sentimento do Mundo, ou seja, o poema maior seria aquele tipo de poema que a gente encontra em “Autofonia”: poemas de luta e resistência, poemas de cunho social (como se pudesse haver algum tipo de arte imune à sociedade). Poemas que vêm para ser a mosca na sopa. Para desafinar – e desafiar – o coro dos contentes, como canta Torquato Neto. Em crônica, comentando a crítica sofrida por autores alinhados no que se convencionou chamar de Romance de 30, Graciliano Ramos escreveu:  

Vamos falar mal de todos os romancistas que aludem à fome e à miséria das bagaceiras, das prisões, dos bairros operários, das casas de cômodos. Acabemos tudo isso. E a literatura se purificará tornar-se-á inofensiva e cor-de-rosa, não provocará o mau humor de ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém.

 

Ora, a poesia de Pilati vem justamente para perturbar a digestão dos que podem comer. Para pisar o asfalto de sua cidade vilipendiada pela grana, pela gana do capital. Vem para destacar as marcas do tempo sobre a pele, sobre as instituições. Vem para incomodar a todos nós que estamos calados diante de todo descalabro que está acontecendo aqui e agora. Vivemos tempos de “escassez mundial de cores”, como canta Alexandre. São tempos brancos, de machos brancos, héteros, cristãos, cidadãos do bem; são tempos anti-negros, anti-mulheres, anti-gays, anti-arte, anti-liberdade, enfim, tempos bicudos como tucanos demoníacos. É preciso estar atento e forte, como canta Caetano, e como alerta o poeta em “Porto Seguro contra um futuro incerto”

O dinheiro nunca dorme

Seu ser sem miolo

Estira os olhos bem abertos

Sobre a carne dos homens

Sobre o espírito das coisas

Nunca dorme o dinheiro

Alerta a sua alma vaga

Poética sem palavras

Escava os cantos do mundo

Com mil membros eretos

O dinheiro nunca dorme

Bate o seu felino coração

Seu léxico de platitudes

Reverbera ódio e fascínio

Seu vampiresco beijo persuade

Nunca dorme o dinheiro

Massa bruta sem sombra

Seus dentes de divino metal

Roem e massacram o tecido da vida

Viram as vísceras das nuvens e do devir

Nessa grande guerrilha poética empreendida por Pilati, o artista se impõe como mestre de sua arte. Seus poemas exibem virtuoso artesanato poético, se compõem de refinada arquitetura, com a construção de  imagens desconcertantes como em “Brasília, setembro 2016”:

como bois

raquíticos, árvores secas ruminam firmes e alheias  

ou em “Meu velho”:

o ar que me sustenta zumbe

e a sombra suspira um gesto

ou ainda em “Selfie”:

Faço a cinzel o sorriso e ando. O chão

movediço e vaginal acolhe minha ilusão.

Surpreende a sensualidade de “Broadcast yourself” que se constrói na exuberância da prosa poética dos versos que se sucedem como fluxo de consciência, formando mais que um sentido, uma sensação de lubricidade e paranóia, a languidez latente das palavras, de Eros contra Tanatos:

,essencialmente abstrusa na tua alvura de princesa, na delicadeza

dos contornos, na luz divina que espoca o que cultivaste como

obediência se recalca, aninha-se pacientemente em concordância

no osso da eloquência e nas estranhas formas que se libertam

a custo do orifício o que nunca desejaste aceitar,

O lirismo de Alexandre Pilati se reveste de confissão mascarada pela sofisticação da frase, pela reelaboração do sentido, penetrando fundo no mistério do outro, do desejo. Toda poesia é, no fundo máscara construída para se dizer o que se quer ocultar. O fingimento de Pessoa ecoa nos versos de “Autofonia”, como em “No meio do caminho”:

eu sangro enquanto choras asfalto, cal e carros

e te desejo monumental, tortamente Diadorim –

macho na chuva, fêmea nas manhãs: ninguém durma!

E no belíssimo “Noturno de Maria”:

onde a alma tua canta

há carinho e abrigo teus

nalgum canto da treva de mim;

Mas o poeta sabe que o amor é linguagem de corpos que se entendem, não de almas (estas não se entendem, como nos versos de Bandeira) e por isso declara no “Jardim das musas”:

Sem dançar, foder, beber, beijar

A pele não entra na boca não viaja

O sangue no sexo sem saber

Sem poesia não fica de pé

Pica nenhuma xota nenhuma chora

Terra crua seca sem vida não dá nada

Não salta saliva não nasce porra nenhuma

Nada ovula nada vai além nada vira jardim

Musa nenhuma engravida

De palavra

“Autofonia” é um livro para desconcertar quem se crê confortável em sua poltrona diante da TV, para incomodar. Se queres sossego, fuja de sua leitura. Alexandre Pilati nos deu um livro de deliciosa violência e denúncia. Mas, creia, o que subjaz à obra de arte é que a tensão que pulsa nos seus versos bate fundo em nosso coração, irmanando-nos no seu tônus poético. Acabamos por vibrar em comunhão com o poeta e querer também dinamitar a ilha de Mannhatan. Essa a razão do poema: tanger as cordas de nosso espirito. O poeta, como Orfeu, conhece os mistérios dessa sinfonia.

Luz do chão

ao poema que pede

tuas pernas só pra quebrar

e tuas inefáveis penas

idiossincráticas

dá a indecorosa intercorrência

da escassez mundial

de cores

dá o que falta ao poema

consistência de matéria de coisa chã

ou de vento ar: que é a coisa mais concreta e mais azul

lembra-te, poeta:

contra as certezas aéreas do poema se ergue a espinha

de sísifo

da diarista

que brande derrota dia após dia pela porta

dos fundos

ao poema extremo e mínimo

repórter do desvão bolorento do privado

coração elíptico dos modernos comendadores

dá então aqueles

roteiros roteiros roteiros

e a bulha infernal da estação

às fatigadas horas de sol

e a afásica carne de engrenagens

de ferruginosa luz do capital

dá a opressão sempre literal

sempre feita

de tétano e cortante lata

contra o poema empalhado

ouve, então, (o poema ouve, não duvides!) alguém

ouve a meio da rua ou dentro do corpo:

“vai lá, mata ele, mata bem, mata todo, lincha bem.”

Os efeitos da leitura desses versos são, graças ao deus de toda rebeldia, a teimosia, a insistência contra a ignomínia (parafraseando um dos seus versos) e, apesar da libitina e de todas as suas formas (também de um seu verso), a vontade de seguir lutando. Como quando o poeta declara, cheio da santa ira dos justos, pleno de ferocidade, em  “Ralhete”

deixe estar que a raiva de minha raça vencerá

ela será como sempre foi: a troça que destroça,

o amor que vem do ódio, a vida que brota à revelia nas ventas do morto.

 

Sigamos na confraria.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Caminhada


 


Viver é uma caminhada

com chegada já prevista

pré-determinada

e que partindo do parto

tem seu ponto final

na estação indefinida

da perdida experiência

dos antigos passos.

 

Andando em linha reta

apressa-se a caminhada

para o fim indesejado

Revolteie, pois, o seu trajeto

Tente uns atalhos

Experimente umas trilhas

Arrisque uns saltos

faça retornos, curvas

mais que acentuadas

pois o tempo não se ganha.

 

Sem medo, sem receios

aproveite o caminho

cada dia ensolarado

cada noite enluarada

e manhãs de esperança

cada minuto caminhado

Saboreie cada passo dado

pois o tempo é um carro célere

que nos atropela no caminho

e nunca anda de ré.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Os mesmos

 









A máscara, Fred Svendsen




Podia tanta coisa

(os desvios)

não fossem os trilhos

Talvez o mundo

(sem fronteiras)

não fossem as amarras

Ou os sete mares

(sem calmarias)

não fossem as âncoras

 

Podia outros caminhos

(mesmo íngremes)

não fossem as pedras

Outras cidades, países

(planetas)

não fossem as correntes

Talvez outros amores

(desejos)

não fossem as culpas

 

Podia ser outro e melhor

(distinto)

não fossem os medos

Quem sabe outros modos

(jeitos, maneiras)

não fossem os outros

Mas nada parece romper

os trilhos, as amarras, as âncoras, as pedras, as correntes, os medos, as culpas, os outros

e seguimos

os mesmos.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A fossa

 



 

        Sobre um poema da Adriane Garcia

        Aos meus amigos poetas

 

Não se atreva a salvar um poeta

é no afogamento que eles respiram

vivem no mergulho mais profundo

onde a poesia encandeia

seus olhos frios

de peixes acostumados às fossas.

 

Não toque neles

retirá-los, à força, da água,

por melhor que sejam seus motivos,

é determinar a sua morte

e o fim da poesia.

 

Um poeta em conforto

é criatura inerme

porco-espinho nu

serpente sem presas

tigre sem garras.

 

Deixai, portanto que eles se afoguem

a cada braçada em direção ao abismo

num lugar que nunca apreenderemos

e tragam a luz de seus versos para nossa escuridão.

 

Só os poetas percebem

a lenta agonia

que sofremos

sem nos darmos conta

que morremos

como peixes sobre a terra

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Outro poema sobre uma notícia de jornal


 

Thaylanne voltava de uma festa no entorno do Distrito Federal

foi abordada por três homens de bem

que lhe berraram ao ouvido que sapatão tem que morrer

e começaram a espancá-la com barra de ferro, madeira e concreto

quebrando-lhe dentes, o maxilar, rachando seu crânio, macerando sua carne

e a deixaram sem sentidos, caída sobre a lama.

Thaylane tinha dezessete anos e muitos sonhos

que se findaram numa poça de sangue.


Há, sim, demônios no caminho

vestem dentes brancos

usam branco colarinho e crucifixo

vão à missa aos domingos com a Bíblia sob o sovaco

comungam e beijam os pés do senhor morto

num langor contrito e convincente

batem gentilmente em nossas costas

e nos aniversários apertam as bochechas das crianças

mostrando a cara falsa da bondade.

À noite, quando a noite é mais escura

dentro de suas consciências frias,

saem pelas ruas e mastigam todos os anjos

devoram todos os santos

destroem toda beleza.

Esses demônios dormem

em seu vizinho, em seu irmão, seu delegado

seu patrão, seu professor, seu namorado

dormem ao lado de quem está ao seu lado

e quando acordam...ah, quando acordam...

o mundo mostra-se mal e podre

e sem milagres.

 

LAF

sábado, 1 de agosto de 2020

A moral cinzenta do fatalismo


Segundo Bosi, no seu referencial História concisa da literatura brasileira, a poesia de Raimundo Correia (1859 -1911) destila a moral cinzenta do fatalismo. Ao comentar, superficialmente, a poesia parnasiana desse “mestre seguro” , “menos fecundo e mais sensível” que os demais parnasianos, Bosi considera que seus versos são “exemplo de uma poesia de sombras e luares que inflectia amiúde em meditações desenganadas”. Na verdade, como muitos outros bons autores dessa nossa língua, Raimundo Correia é um ilustre desconhecido. Admirado por muitos escritores (Manuel Bandeira e Mário de Andrade são seus fãs de carteirinha), dentre os quais me incluo, é autor de um dos mais belos sonetos de nossa literatura, “As pombas”, sob o qual revolteia uma polêmica acerca de “inspiração” em outra obra. Não me interessa aqui discutir essa pendenga. Em 1979, ganhei um exemplar de “Poesias” (6ª.Edição, 1958), coletânea do autor que inclui poemas de três de suas obras, “Sinfonias” (1883), “Versos e versões” (1887) e “Aleluias” (1891). Em dedicatória, leio: “Ficou muito tempo numa anônima livraria e foi encontrado por acaso. Para o Leo, meu amigo paraibano e ‘parnasiano’. Norma”. Devo confessar que de parnasiano tenho apenas a paixão apolínea por um verso perfeito, como apreciador de poesia, não como poeta – que não tenho a paciência para limar versos, esmerilhar palavras, lapidar rimas.
Fiz um poema dedicado ao Raimundo Correia, mas antes registro aqui o maravilhoso poema III, conhecido como “As pombas”:

Vai-se a primeira pomba despertada
Vai-se outra mais... mais outra...enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam.
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

(Raimundo Correia)


Agora o do Leozinho:

Poema para Raimundo Correia


Sofra o coração, embora!
Sofra! Mas viva! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!

Ah, Correia, meus pombos que não voltam
E por não voltarem eu que me acabo
E vou-me entre brumas de cigarros que não fumo
E com notáveis fumos de defuntos que evaporam

Ah, Correia, meu poeta dos pombais desertos
Eu com meus oníricos desenhos tediosos
Suspirando o tédio úmido dessa chuva que não cessa
E que por não cessar vai me afogando.

Ah, Correia, se soubesses o quanto dói não ter mais pombas
E assim, sem asa ou vôo, seguir telúrico
Chafurdando o que era sonho em lama e lodo e limo
Apoiado no pombal vazio desses anos
Agora, mais que nunca, só pombal, só pombal.

domingo, 14 de junho de 2020

Experimento








     “viver não é para amadores”



Pondere
Não é hora de alimentar as larvas.
Vê como se arrastam pelas pedras?

Ainda há pouco havia estrelas
e chovia sobre o soluço dos batráquios.
Agora há poças no pátio onde adormecem
homens seminus que nada esperam
além do frio.
Talvez seja sempre inverno
e nenhuma primavera mostre os dentes.
A esperança é filha bastarda do talvez.

Reconheça o grande esforço das monções
em afogar o gado e as plantações de arroz 
Nada sobrevive à falta de incentivo,
nem mesmo as larvas sobre as pedras
dispensam alimento

Talvez a tua própria carne apodrecida
ou tua pele esticada no curtume
deponha sobre ti,
em como não fizeste o necessário
e por essa razão perdeste o senso
o rumo, o prumo
a hora exata.

Agora é o tempo do sonho
e os rios mansos começam a correr,
arrastando os sorrisos das crianças
e os olhos frios dos peixes
para a boca salgada de oceanos desconhecidos.

Pondere
Nada é mais real que a fantasia.
Nada mais concreto que a máscara.
Todo o resto é possibilidade
apenas possibilidade
como um gato vivo e morto
arranhando uma caixa 
num mundo de surdos.